ETNOGRAFIA PARA A GESTÃO DE MARKETING
O que é Etnografia
Antes de tratarmos do que é a Etnografia, é
preciso expor o que é a Antropologia, de onde a etnografia é uma
das cadeiras ou práticas de estudo. A Antropologia é o estudo do
homem, no passado e no presente. Há basicamente três linhas de
estudo na Antropologia: a primeira é a Antropologia Biológica,
preocupada com a física do Homem, como sendo um ser biológico e
com um percurso evolutivo. A segunda (e talvez mais conhecida) é a
Antropologia Geral, cujo foco está voltado para o homem no tempo,
através de momentos, restos de moradias, documentos, armas,
artes. Em suma, de vestígios que mostram os caminhos das civilizações
e o seu lugar na História.
A terceira é a Antropologia Social, Cultural
ou Etnologia, que é o estudo do homem como produtor e
transformador da natureza, segundo Da Matta (1993). É o estudo da
visão do homem como membro de uma sociedade e de um sistema de
valores, tendo como idéia que a sociedade é um conjunto de ações
ordenadas de acordo com preceitos que ela mesma criou.
A Antropologia, como área de estudo, surgiu na
Grécia Antiga, mas somente nos séculos XV e XVI, na Europa, é
que ela se desenvolveu com um aspecto ideológico, colocando o
europeu explorador e colonizador superior às outras sociedades.
Grosseiramente, podemos dizer que a Antropologia tomou dois
diferentes rumos de estudos. O primeiro começou com Sir James
Frazer, que procurava grandes verdades universais comparando
diferentes culturas humanas em escala mundial. O outro ramo começou
com Bronislaw Malinowski, um polonês com formação em física e
matemática, que se naturalizou inglês e passou a sua vida
dedicando-se a análise de dados resultantes de pesquisas que fez
durante quatro anos numa única aldeia na Melanésia (Malinowski
, 1978).
Frazer acreditava, sob influência da teoria de
Darwin, que a evolução das sociedade ocorriam de forma linear.
Assim, ele e outros com a mesma visão, passaram o seu tempo em
seus escritórios, colecionando relatos etnográficos dos mais
diferentes cantos do mundo. Porém comparando costume por costume
e não o costume dentro do contexto onde ele aparece, para então
comparar com outra sociedade, como fazemos hoje. Frazer e seus
amigos fundaram o Evolucionismo, linha teórica que versava que as culturas
deveriam ser comparadas entre si por meio de seus costumes
isoladamente. Esta linha de pensamento também pregava que os
costumes tinham uma origem e um final e, é claro, o final era aquele percorrido pela
sociedade branca, européia e tecnológica. Acreditavam que um dia
todas as sociedades atingiram o mesmo ponto evolutivo que a
sociedade européia da época, num processo de evolução linear. É claro
que esta linha de pensamento já não é mais utilizada, pois o
fato de não avaliar todo a conjunto promove graves falhas de
interpretação.
Já Malinowski possibilitou a surgimento do
Funcionalismo. Esta linha teórica prega que nada em uma sociedade
acontece por acaso. Estuda a sociedade como um sistema
coerentemente integrado de relações sociais (Da Matta, 1993). Ou
seja, numa sociedade não haveria restos sociais, como pregava
Frazer. Tudo tem um sentido e um costume, hábito social1
ou instituição está compreendido dentro de um sistema coeso.
Mesmo instituições sociais cujo papel é desequilibrar a
sociedade, tem o seu papel na ordem estabelecida.
Segundo Da Matta, "a partir da revolução
funcionalista, a comparação deixou de ser uma vitrine de
museu" que apresenta apenas fragmentos de uma sociedade,
"através da qual o observador <civilizado> via e
classificava todos os primitivos, para transforma-se num espelho,
onde o primeiro rosto a ser visto é o seu próprio".
Malinowski foi o primeiro antropólogo a deixar
de trabalhar com relatos recolhidos de missionários e
comerciantes brancos. Ele introduzindo-se numa comunidade tribal e
evitando ao máximo o contato com outros homens brancos.
Malinowski acreditava que, para se realizar um levantamento sobre
o modo e práticas de vida de um determinado grupo, ou seja,
desenvolver um trabalho etnográfico, era preciso obter relatos
absolutamente honestos e verdadeiros, estando livres de interpretações
prévias. Interpretações estas que podem ocorrer quando se
utiliza relatos de terceiros. Como o próprio Malinowski disse:
"Estamos
hoje muito longe da afirmação feita há muitos anos por uma célebre
autoridade que, ao responder uma pergunta sobre as maneiras e os
costumes dos nativos afirmou: "Nenhum costume, maneiras horríveis".
Bem diversa é a posição do etnógrafo moderno que, armado com
seus quadros de termos de parentesco, gráficos genealógicos,
mapas, planos e diagramas, prova a existência de uma vasta
organização nativa, demonstra a constituição da tribo, do clã
e da família e apresenta-nos um nativo sujeito a um código de
comportamento e de boas maneiras tão rigoroso que, em comparação,
a vida nas cortês de Versalhes e do Escorial parece bastante
informal" (Malinowski, 1978).
O processo de ir a campo, permitiu ao
antropólogo não apenas o acesso aos relatos e interpretações
do nativo, como também demonstrou a necessidade de que o antropólogo
deve estar desprovido de quaisquer pré conceitos. Isto permite
compreender outras sociedades a partir das reflexões dos seus
próprios membros e como estes acabam por justificar o seu
comportamento.
Porém, não podemos cometer o erro de limitar
a Antropologia e a Etnografia ao estudo de civilizações ditas
"primitivas". O antropólogo e o etnólogo desenvolvem
suas análises a partir de comparações entre o que lhes é conhecido (o eu) e o que lhes é estranho (o outro). Mas como
citado por Pedro Jaime Júnior (2001:69), a Antropologia pareceu
entrar em crise quando viu o seu objeto em perigo. Devido ao
"genocídio cultural" que estava sendo promovido pelo
Ocidente, sobre diversas culturas tribais pelo mundo, promovendo a
criação de Estados organizados politicamente e a introdução da
indústria e de novos meios de satisfazer as necessidades. Mas
como eu já disse, a cultura não tem um começo ou fim, como
acreditavam os evolucionistas.
A cultura se transforma, muda e se adapta.
Assim sendo, a possibilidade da diversidade cultural desaparecer
á bem remota. O que acontece é que surge um novo desafio ao
antropólogo, aonde ele necessita entender uma cultura por meio do
processo de estranhamento, que se faz necessário quando o
pesquisador está inserido dentro de uma comunidade que possui
elementos culturais similares aos do próprio pesquisador. Por
isso, quando Pedro Jaime Júnior (2001) apresenta a Antropologia
como sendo uma construção histórica do estudo do outro, parece
ser limitado, pois deixa de observar que a Antropologia torna-se
um estudo de nós mesmos como uma sociedade formada por grupos
sociais e com distinções culturais internas. Durante o processo
de comparação precisamos descobrir quem realmente somos, para aí
sim, poder dizer quem são os outros, eliminando quaisquer pré conceitos
de certo ou errado que possam contaminar a avaliação.
Métodos utilizados pela Antropologia
Livre de pré conceitos, o antropólogo
faz uso de diversas metodologias de pesquisa. A etnografia possui
como características a ênfase na exploração de fenômenos
sociais particulares, entrevistas em profundidade, análise do
discurso de informantes, investigação em detalhe, perspectiva
microscópica, interpretação dos signos e práticas sociais e, a
já citada, observação participante (Rocha,
1999).
Por meio dessas metodologias, o investigador
poderá entender o seu objeto de pesquisa a partir do ponto de
vista do próprio objeto. Do ponto de vista do outro, busca
informações diretamente com o objeto, sem atravessadores ou
intermediações, relativizando os fatos (Da Matta, 1993). Foi com
esta mesma posição que a Escola de Chicago buscou estudar grupos
urbanos nos Estados Unidos, mostrando como comunidades urbanas,
inseridas dentro de uma sociedade industrial, possuiam sua própria
cultura e valores.
Para a realização da pesquisa etnográfica,
os pesquisadores fazem a combinação das metodologias para a
coleta dos dados e avaliação. Segundo Rocha, o primeiro
instrumento seria a observação direta a fim de obter uma
perspectiva dos fatos na forma como estes se apresentam na
realidade. Dependendo do caso, esta observação pode ter total
participação do pesquisador ou o seu completo afastamento.
Por meio da observação participante o
pesquisador poderá analisar, por exemplo, como os procedimentos
do cotidiano influenciam e determinam a forma de uso de um
produto. Percebendo como a cultura se reflete e mede as relações
entre os indivíduos e estes com a sociedade maior e mais complexa em que estão inseridos. Ou seja, permite que o
pesquisador veja a cultura como sendo o fenômeno que é produzido
pelos homens por meio das relações sociais e como isto se
reflete nos usos e costumes (Oliven, 2002).
Existem dois modos de conduzir a pesquisa
fazendo uso da observação participante (Mauss, 1993). A primeira
é o método extensivo, por meio de inquérito, onde se procura
ter contato com o maior número de pessoas num determinado espaço
e por um determinado tempo. Este modo permite que o pesquisador
identificar um grande volume de casos e locais onde se deve
trabalhar com maior afinco. O risco da pesquisa extensiva a o seu
caráter superficial, mas ela pode gerar uma série de informações
que poderão guiar para uma pesquisa intensiva, que é o segundo
modo pesquisa.
A pesquisa intensiva é a observação
aprofundada do objeto de estudo. É quando, por exemplo, o
pesquisador insere-se no núcleo familiar para compreender como a
ordem social estabelecida naquele grupo define o processo de
compra de um produto ou serviço. Ou então quais são os
elementos que influenciam na decisão do produto X ou invés do
produto Y e que carga simbólica cada um deles possui.
Muitas vezes é difícil desenvolver uma
pesquisa intensiva sem que pesquisados conheçam intimamente o
pesquisador. É aí que as entrevistas em profundidade, feitas com
informantes ou membros do grupo pesquisado que estão mais
dispostos a colaborar com a pesquisa. Eles podem trazer informações
relevantes sobre a ideologia do grupo estudado e qual é a
interpretação dos participantes das situações sociais e dos
seus hábitos de consumo. Com um roteiro de perguntas previamente
elaborado, sempre que possível, estas entrevistas devem ser
realizadas dentro do próprio meio do objeto de pesquisa. Ou seja,
num lugar aonde os entrevistados estejam familiarizados e
acostumados. O seu simples deslocamento para um lugar neutro para
a entrevista poderá prejudicar na obtenção dos dados.
Se o estudo necessita da compreensão do uso do
espaço pelas pessoas, são obtidas fotos dos objetos, ambientes e
encontros entre os membros dos grupos. Há antropólogos como Paco
Underhill (Correa, 2001), que no estudo do consumo nos centros
varejistas, faz uso de câmeras de segurança e agentes disfarçados
para realizar a coleta de informações.
Mas é bom deixar claro que, por questões éticas
e de respeito aos contextos sociais do outro, o uso de fotografias
e filmagens deve ser do conhecimento daqueles que estão sendo
estudados. Não digo que se deve fazer como no caso das câmeras
para segurança, aonde coloca-se o irônico aviso "Sorria,
você está sendo filmado" (e no caso da pesquisa etnográfica
seria "Aja normalmente, você está sendo estudado"). Mas
aqueles que forem estudados, devem, pelo menos, após o período
de estudo, serem informados da pesquisa. Este procedimento além
tornar a pesquisa ética e respeitar os pesquisados, pode abrir
portas para entrevistas em profundidade e resguardar o pesquisador e seu contratante de desconfortos legais. Não havendo aceite por parte do pesquisa, o material coletado deve ser descartado. Este é um risco ao qual todas as pesquisas estão sujeitas.
O pesquisador etnográfico pode ainda fazer uso
da investigação documental, usando-a como fonte secundária,
que pode contribuir na compreensão, sobre tudo, da construção
histórica dos aspectos analisados. Como disse, a cultura está em
permanente movimento, mas também está fundada em aspectos históricos.
O levantamento histórico é necessário nos casos de influências
interculturais, como por exemplo, para se compreender como a
motocicleta tornou-se um objeto de lazer no Brasil sob influência
norte-americana. A etnografia tanto colabora para o
desenvolvimento de pesquisas quantitativas, como também faz uso
destas. O uso das pesquisas quantitativas, como mensuração de público
consumidor podem ser fundamentais para a compreensão da
morfologia social (demografia e geografia humana).
Mas o mais interessante da pesquisa etnográfica está na junção
e cruzamento das informações obtidas por estes métodos. Tanto
que é comum, no momento em que são realizados os relatórios de
pesquisa, que estes sejam organizados por temas chaves e não
cronologicamente, já que alguns estudos podem levar anos de
investigação. Por meio destes métodos podemos compreender o
grupo e também como o indivíduo do grupo pensa e age como
consumidor.
O consumidor como pessoa, indivíduo e em grupo
O consumidor atual, antes de mais nada, é uma pessoa e um
indivíduo que está inserido numa sociedade complexa, formando diversas relações sociais que o mapeam nesta sociade. Sociedade esta que surgiu da Revolução Industrial, criando divisão
social de trabalho, aumento da produção, aumento do consumo e do
rápido crescimento urbano.
Neste cenário, onde existe inúmeras instituições
dentro de uma sociedade, há possibilidade que o indivíduo crie
um mapeamento próprio dentro de tais instituições. Ou seja, a
individualização, criando para si um protejo individual e a
construção de uma identidade. Segundo Gilberto Velho (1997) esta
criação de identidade é realizada dentro de um contexto em que
diferentes esferas da vida social se relacionam e se interpenetram
e se misturam.
Ou seja, o consumo de um produto X ou Y pode
ser determinado pelas experiências de vida do indivíduo (o seu
projeto individual). É possível encontrar grupos de indivíduos
com um projeto social que englobe, sintetize ou incorpore
diferentes projetos individuais, isto estando dependente da percepção
e de vivências de interesses comuns, como classes sociais, grupos
étnicos, grupos de status, religião, vizinhança, ocupação,
etc.
Ao analisarmos o consumo de um determinado
produto estaremos descobrindo as experiências de vidas que geraram
este consumo. Também poderemos descobrir elementos em comum
dentro do grupo de consumidores. Estes projetos constituem uma
dimensão da cultura, já que trazem consigo uma expressão simbólica
existente num universo de representações que estão inseparáveis
da prática social. Assim faz-se necessário a sua investigação
para entender a relação entre os projetos individuais.
Segundo Velho (1997), a produção simbólica
cria contornos de um grupo social ou de uma sociedade específica
e podemos encaixar aqui um grupo de consumidores. Seria preciso,
portanto, entender a cultura como um código ou sistema de
comunicação. Ou como repertório de hábitos e costumes flexíveis
e em constante mudança. A cultura seria um elemento pelo qual a vida social se processa e é observável por meio de práticas
e símbolos que estabelecem fronteiras entre os grupos
e/ou indivíduos. Na compra e uso de um produto ou marca, o indivíduo
está buscando para si um representação que pretende demonstrar
para os seus grupos de referência e para sociedade como um todo.
Isto pode acontecer com qualquer tipo de produto, desde sabão em
pó à carros esportivos.
Mesmo que seja grande a possibilidade que os projetos
individuais tenham alguma relação, e que possam ser distinguidos a
partir das classes sociais, idade ou outras, sempre que procuramos
dimensionar um mercado, baseado pelo poder aquisitivo,
idade, sexo ou região, sem antes observar se a confluência deste
projeto permite que façamos isto. As empresas acabam por
dimensionar um mercado potencial maior do que ele realmente é,
gerando erros nas estratégias de marketing.
1 Da Matta utiliza as
carruagens como exemplo, mostrando que mesmo que hajam carros
motorizados, as carruagens desempenham um papel, com um novo
significado social no mundo moderno.
Bibliografia
utilizada neste texto:
CORREIA, Cristiane.
O Big Brother do varejo. Revista Exame. Ano 36, nº 08, págs.
80-92, São Paulo, 17 de abril de 2002.
DA MATTA, Roberto. Relativizando:
uma introdução à antropologia social. 4ª ed., Rocco, Rio
de Janeiro, 1993.
JAIME JÚNIOR,
Pedro. Etnomarketing: antropologia, cultura e consumo.
Revista de Administração de Empresas, v. 41, ano 4, pág. 68-77,
out./dez. de 2001.
MALINOWSKI,
Bronislaw Kasper. Argonautas do Pacífico ocidental: um relato
de empreendimento e da aventura dos nativos nos arquepélagos da
Nova Guiné Melanésia. 2ª ed., Abril Cultural, São Paulo,
1978.
MAUSS, Marcel. Manual de
Etnografia. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1993.
OLIVEN, Rubens
George. Antropologia de grupos urbanos. 5ª ed., Editora
Vozes, Petrópolis, 2002.
ROCHA, Everardo
& outros. Cultura e consumo: um roteiro de estudo e
pesquisas. XXIV ENANPAD, ANPAD, Foz do Iguaçu, PR, 1999.
VELHO, Gilberto. Individualismo
e Cultura: notas para uma Antropologia da Sociedade Conteporânea.
4ª ed.; Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1997.
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